Acordava com o canto dos pássaros como se o dia oferecesse sempre uma promessa primeira. Vestia por dentro, uma coragem de leão que nem sempre chegava a todos os gestos. Havia uma contradição permanente entre o rumor calmo da manhã e o turbilhão que morava no peito; cada passo pela casa, cada chávena de café tomada, trazia a lembrança de pequenas batalhas ganhas e de muitas perdidas.
As desilusões entravam devagar, como água que infiltra uma rocha: quase impercetíveis no início, decisivas depois. Formaram sulcos na alma, cicatrizes com relevo próprio que se reconhecem ao toque das lembranças. Algumas marcas queimavam quando eram mexidas; outras, com o tempo, passaram a ser apenas histórias aceitáveis. Guardei-as como quem coleciona pedras de estrada: umas cortantes, outras polidas pelo uso. Cada cicatriz trazia um nome, um gesto, uma falha minha ou alheia; eram mapas que eu não sabia ler sem dor.
As noites tornavam-se santuário: chorava com a cortina fechada, um choro que era limpeza e confissão. Ao amanhecer, punha a minha armadura de costume e voltava à luta. Havia dias em que a resistência parecia apenas um andar tateante, outros em que rastejava um brilho inesperado de vitória. Trabalhar, cuidar, fingir normalidade e cuidar de si, tudo se misturava numa coreografia cansada. Perguntava-me constantemente o porquê das quedas e até quando suportaria a faina de recomeçar.
Coleccionei marcas na alma ao longo dos anos; não eram assaltos ao mundo, eram confrontos comigo mesma. Interrogava o vazio: porquê e até quando? Essas perguntas tornaram-se companhia insistente, um eco que insistia em regressar nos momentos de silêncio e nas conversas mais domésticas.
Um dia, o senhor do tempo mostrou-se exausto. As lágrimas ficaram secas e a voz perdeu a sua urgência. A determinação, que antes rugia, encolheu-se sem anunciar partida. O sorriso transformou-se numa máscara gasta e a máscara caiu quando ninguém olhava. O olhar, liberto de artifícios, ficou nu; essa nudez revelou o que a rotina escondia: um cansaço crónico e uma verdade que pedia repouso. Foi nesse silêncio que percebi que resistir por resistência já não bastava.
As marcas não desapareceram; converteram-se em tatuagens interiores, desenhos que narram onde feri e onde fui ferida. Aprendi a lê-las sem acusação, com a precisão de quem estuda um mapa para não repetir rotas perigosas. A força que encontrei não nasceu da ausência de medo; nasceu da decisão consciente de continuar apesar dele. Aprendi a aceitar mãos estendidas; aprendi a pedir; aprendi que a partilha alivia o peso das pedras. Aos poucos, essas tatuagens tornaram-se linhas de orientação: lembram o que evitar e o que preservar.
A vida compõe-se de manhãs pequenas e rupturas grandes, de lágrimas silenciosas e sorrisos ensaiados. A desilusão deixa marcas, mas também oferece lições com tinta indelével. Transforma-se em memória que serve, não para aprisionar, mas para avisar e guiar. Cada dia é uma folha em branco; cabe-nos desenhar nela coragem, cuidado e esperança. Viver é colecionar pequenos gestos que aquecem outros corações. Faz um gesto hoje. O mundo precisa dele.

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Cicatrizes da vida
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